Vivamos agora do seu muito fruto

«Os que tiverem levado muitos aos caminhos da justiça brilharão como estrelas com um esplendor eterno» – é uma garantia do Livro de Daniel e creio aplicar-se muito bem ao Papa Bento XVI, que sufragamos nesta Missa.

Sobre a justiça diz-nos o Catecismo da Igreja Católica ser «a virtude moral que consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido. A justiça para com Deus chama-se “virtude da religião”. Para com os homens, a justiça leva a respeitar os direitos de cada qual e a estabelecer, nas relações humanas, a harmonia que promove a equidade em relação às pessoas e ao bem comum» (nº 1807).

Creio que o percurso pessoal e pontifical de Bento XVI demonstram com excecional clareza o exercício da justiça, assim globalmente considerada e aplicada. Dar todo o lugar a Deus para dar também toda a atenção ao próximo, foi o que constantemente nos exortou a fazer, homilia a homilia, encíclica a encíclica, atitude a atitude.

Mesmo a sua insistência em recusar o indiferentismo ou o esquecimento de qualquer dimensão humana, incluindo a religiosa, vai nesse sentido. O lugar de Deus e a referência ao absoluto não são dispensáveis, se não quisermos de seguida dispensar ou relativizar a realidade no seu conjunto ou cada pessoa no seu particular.

Não seria difícil citar aqui inúmeras passagens do seu magistério, mas, no curto espaço que uma homilia deve ter, fico-me apenas com algumas alusões ao que proferiu entre nós, na memorável viagem a Portugal de 11 a 14 de maio de 2010. É demasiado importante para ficar esquecido e é oportuno agora acentuá-lo aqui.

Ainda a caminho, no avião que o trazia até nós, disse aos jornalistas que o acompanhavam ser necessário dialogar com todas as correntes que alastraram na Europa moderna, em «séculos de dialética entre Iluminismo, secularismo e fé». E não o fez pela negativa, antes para suscitar um diálogo verdadeiro e mais capaz. Disse assim: «Hoje vemos que justamente esta dialética é uma oportunidade, que devemos encontrar uma síntese e um diálogo profundo e de vanguarda» (todas as citações de Bento XVI, podem ser conferidas nas partes respetivas de Bento XVI e Portugal, Contigo caminhamos na esperança, Lisboa, Paulus, 2010).

Um diálogo profundo e de vanguarda… Assim o disse e assim o tentou sempre nos anos do seu pontificado. Diálogo com o pensamento e a cultura e diálogo interno e externo, com a Igreja e as religiões em geral. Porque em todos os casos tratava-se da mesma justiça, em que nada se ilude ou secundariza, desde que interesse ao absoluto de Deus ou à realidade humana, por mais distinta e complexa que se apresente.

Por isso falava em síntese a atingir, mais à frente e mais a fundo, com especial atenção à crescente variedade de pessoas e convicções existentes no espaço europeu e além dele. Só este facto deveria – como sempre deve – abrir mais espaço e respeito para com a dimensão religiosa que tantas pessoas trazem e não descuram. Continuava assim o seu discurso a caminho de Portugal, a 11 de maio de 2010: «Na situação multicultural na qual todos estamos, vê-se que uma cultura europeia que fosse unicamente racionalista não possuiria a dimensão religiosa transcendente; não seria capaz de entrar em diálogo com as grandes culturas da humanidade, que possuem, todas elas, esta dimensão religiosa transcendente, que é uma dimensão do ser humano».

Mais uma vez, trata-se de “justiça”. Justiça que dê a Deus o lugar que o coração humano não dispensa, como fé ou como procura. Esta tónica está sempre presente no pensamento do Papa Ratzinger e vimo-la também no que nos disse naqueles dias entre nós.

Como cristão, que era e tão bem expressou nas últimas palavras que terá dito antes de falecer, resumindo a vida no amor a Cristo, esta referência religiosa era propriamente dita, como adesão convicta ao Fundador do cristianismo. E não demorou em advertir-nos para o perigo duma fé diluída, que O esquecesse ou nem O conhecesse de facto. Uma fé mais adjetiva do que substantiva, quase como referência sociocultural que sobrasse.

Logo na homilia no Terreiro do Paço, nesse mesmo dia 11 de maio e com toda a clareza, advertiu-nos com palavras que não perderam atualidade: «Muitas vezes preocupamo-nos afanosamente com as consequências culturais e políticas da fé, dando por suposto que a fé existe, o que é cada vez menos realista».

Face a isso, não tardou a exortar-nos a algo de essencial e urgente, logo captado com entusiasmo pela multidão que transbordava daquela grande praça, sobretudo os jovens: «É preciso voltar a anunciar com vigor e alegria o acontecimento da morte e ressurreição de Cristo, coração do Cristianismo. […] A ressurreição de Cristo assegura-nos que nenhuma força adversa poderá jamais destruir a Igreja. Portanto, a nossa fé tem fundamento, mas é preciso que esta fé se torne vida em cada um de nós».

Recordemos que a viagem de Bento XVI a Lisboa aconteceu num período – em que aliás ainda estamos – de purificação interna da Igreja e correção do que havia e há a corrigir. Empenhado como sempre esteve nesse sentido, não lhe faltaram incompreensões e resistências, como geralmente sucede nestes casos. Também por isso a sua vinda a Portugal e a grande adesão que suscitou no que disse e onde esteve foram para Bento XI bálsamo e incentivo para seguir em frente. Como serão decerto para o Papa Francisco em agosto próximo, quando nos visitar na Jornada Mundial da Juventude.

Trata-se afinal de conhecer, amar e seguir a Jesus Cristo e o Evangelho que nos trouxe, tão pessoal e ético como iluminador e estético que é. Isso mesmo repetiu no encontro com o mundo da cultura, realizado no dia seguinte, no Centro Cultural de Belém: «Convido-vos a aprofundar o conhecimento de Deus tal como Ele Se revelou em Jesus Cristo para a nossa total realização. Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza».

Nisto mesmo insistiria nessa tarde em Fátima, com palavras igualmente fortes e persuasivas: «No nosso tempo em que a fé, em vastas zonas da Terra, corre o risco de apagar-se como chama que já não recebe alimento, a prioridade que está acima de todas é tornar Deus presente neste mundo e abrir aos homens o acesso a Deus».

E esclarecia: «Não a um deus qualquer, mas àquele Deus que falou no Sinai; àquele Deus cujo rosto reconhecemos no amor levado até ao extremo (cf. Jo 13, 1) em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado». Só inteligências e corações muito unificados na relação viva com Cristo vivo conseguem resumir em tão curta frase o essencial teológico e redentor da revelação judaico-cristã.

Bento XVI fê-lo nesta e em muitas outras ocasiões, especialmente quando foi preciso lembrá-lo a quem derivasse deste ponto essencial. Como insistiu na homilia de 13 de maio, assinalando o realismo cristão: «A nossa experiência tem fundamento real, apoia-se num acontecimento que se coloca na história e ao mesmo tempo excede-o: é Jesus de Nazaré».

Centrar-se deste modo na realidade de Cristo era também, para o Papa que nesta Missa sufragamos, imitá-Lo na caridadetão sentida como prática, cumprindo deste modo a justiça completa, na atenção a Deus e aos outros.

Por isso quis encontrar-se com as organizações da pastoral social, a quem lembrou alguns pontos que desenvolvera na sua primeira e paradigmática encíclica de 2005, intitulada precisamente Deus caritas est – Deus é amor. Assim acrescentou, nesse mesmo dia 13 de maio: «O cenário atual da história é de crise socioeconómica, cultural e espiritual, pondo em evidência a oportunidade de um discernimento orientado pela proposta criativa da mensagem social da Igreja». E, muito a seu modo, não demorou em indicar o modo de o fazer, tão urgente hoje como então: «O estudo da sua doutrina social, que assume como principal força e princípio a caridade, permitirá marcar um processo de desenvolvimento humano integral que adquira profundidade de coração e alcance maior humanização da sociedade».

Em conformidade com estas palavras e a herança que hoje recebemos do magistério de Bento XVI, tenhamos em conta o seu pensamento social, como o desenvolveu especialmente na sua encíclica Caritas in veritate. Todos ganharemos com isso e connosco muitos a quem servirmos.

Desta caridade faz parte – como já o dissera na Deus caritas est – o anúncio de Cristo, feito a todos a e a cada um, como vida que se oferece e abrindo horizontes inesperados a quem livremente O aceitar. É outro ponto muito repetido nos seus pronunciamentos, desde a homilia inaugural do pontificado. A doutrina de Bento XVI toca sempre pontos essenciais, que por isso mesmo são existenciais também.

Assim o disse aos bispos portugueses, ainda nesse dia 13 de maio em Fátima. Oiçamo-lo de novo, reparando em cada palavra, com o seu peso próprio: «O apelo corajoso e integral aos princípios é essencial e indispensável; todavia, a mera enunciação da mensagem não chega ao mais fundo do coração da pessoa, não toca a sua liberdade, não muda a vida. Aquilo que fascina é sobretudo o encontro com pessoas crentes que, pela sua fé, atraem para a graça de Cristo dando testemunho d’Ele».

Trata-se, definitivamente, no enunciado e na prática, da religião do Verbo Incarnado. Concordemos que, em Bento XVI, teve uma manifestação muito convincente. E assim há de ser com cada discípulo de Cristo, como lembrou na homilia do dia seguinte, a 14 de maio na cidade do Porto, perante uma multidão que o recebia com grande entusiasmo e o ouvia com a atenção que sempre suscitava: «Na realidade, se não fordes vós as suas testemunhas no próprio ambiente, quem o será em vosso lugar? O cristão é, na Igreja e com a Igreja, um missionário de Cristo enviado ao mundo. Esta é a missão inadiável de cada comunidade eclesial: receber de Deus e oferecer ao mundo Cristo ressuscitado, para que todas as situações de definhamento e morte se transformem, pelo Espírito, em ocasiões de crescimento e vida».

Foi praticamente este o programa que nos deixou, de partida para Roma, concluindo-o com estas palavras, igualmente sugestivas: «Nada impomos, mas sempre propomos, como Pedro nos recomenda numa das suas cartas: “Venerai a Cristo Senho em vossos corações, prontos sempre a responder a quem quer que seja sobre a razão da esperança que há em vós” (1 Pd 3, 15). E todos afinal no-la pedem, mesmo quem pareça que não. Por experiência própria e comum, bem sabemos que é por Jesus que todos esperam».

Foi esta convicção que explicou a sua constante reflexão, bem como a fecundidade do seu ministério. Mesmo na última década, em que viveu retirado, mas não alheado, da vida da Igreja e do mundo, em completo acatamento do ministério do seu sucessor. Como quem sente o dever de partilhar quanto lhe preenche a inteligência e o coração.

Ouvimos no Evangelho: «Se o grão de trigo lançado à terra não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto». Nos noventa e cinco anos da sua existência humana, Ratzinger foi grão de trigo semeado e partilhado. – Vivamos agora do seu muito fruto!

Sé de Lisboa, 2 de janeiro de 2023

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

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